A audição não é a mesma. A visão não é a mesma. Nada desse momento é igual ao momento anterior, a doença de Alzheimer faz graves mudanças a cada instante com novos estragos, silenciosos, lentos e rápidos ao mesmo tempo, construindo um caos específico em cada fase da doença.
Diversos antropólogos, como Marshall Sahlins e Clifford Geertz, lembram que o ser humano vai se adaptando a qualquer coisa, menos ao caos (o desconhecido, o incompreensível). Para eles, a capacidade criadora é a característica essencial do ser humano, que nos ajuda a inventar filosofia, política, cultura e – acrescento – o sentido.
Na percepção de uma pessoa com doença de Alzheimer, quanto mais caos vai se estabelecendo em seu dia a dia mais dará jeito de encontrar saídas, não importa se reais ou não.
Vejo Alduino, meu pai, que está com a doença, aos 89 anos, usar seu conhecimento para criar situações novas, nas quais aqueles personagens que o ameaçam no decorrer de seus pequenos cochilos diurnos sejam finalmente dominados.
Enquanto dorme, o cérebro trabalha uma espécie de ficção que o faz se sentir autor, no cenário que lhe é característico, lembrando-me, assim, o comentário de Bakhtin no meio literário: que a ficção é uma forma de experimentar a verdade.
Esse cenário caótico lembra-me também de “ O grito”, de Godofredo de Oliveira Neto, que indica a representação como salvação. Alduino apresentou cenas teatrais, no passado, mas prefere a teatralização pela música, no imaginário das cenas, nos quais encontra personagens, locais e sentidos únicos que o tornam extremamente feliz.
Claro, o real não é para ser vivido apenas, é para ser reinventado. O mundo não está pronto, aceitá-lo passivamente seria engano. Com Alzheimer ou sem Alzheimer podemos reinventar, nem que seja apenas nos manifestando com um grito. Este seria o prenúncio de que estamos chegando a nós mesmos.
Nas cenas que Alduino conta logo ao acordar dos cochilos, existem diversos tipos de personagens, cujas identidades se mesclam e se disfarçam.
Alguns são do passado, como mostra a foto em que ele conversa com suas criações, representando seus pais quando se dirigiam de cavalo à cidade, no passado distante. Outros são do passado recente. São seres misteriosos, que, ao serem por ele interconectados, encontram sentido para si e lhe produzem sentido. Com arte ele vai criando e agilizando suas histórias.
Ao me relatar o acontecido, com frases restritas, o faz como se estivesse esperando a próxima cena, pois seus olhos brilham na expectativa de vê-los novamente. Alduino se posiciona no comando, embora saiba que há algo em que ele não pode ter autoridade. Para se dar bem com suas criações artísticas, tenta domá-las e com elas interagir. No entanto, nesse caso, precisa ter a paciência de aguardar o próximo cochilo. Como ele não sabe o tempo que demora, abaixa a cabeça e espera torcendo pela próxima cena.
É uma mistura completa, mas e daí? Nem somente de literatura, ficção ou teatralização convencionais vivem as pessoas, mas também de toda reinvenção feitas por elas ao produzirem sentidos em sua própria arte, com Alzheimer ou não.
Alduino me convida, constantemente, a representar novas cenas de sentido, tentando vencer o desafio de restaurar o equilíbrio entre o cenário vivido por ele, seus personagens, suas cenas, suas criações, seu enredo e o mundo das outras pessoas. E eu aceito, sempre de novo.
Zélia Maria Bonamigo é jornalista e antropóloga.