– Oi, lembra de mim?
– Claro, imagine!
Essa é uma das estratégias interessantes que meu pai, 88 anos, com doença de Alzheimer, desenvolveu para driblar o constrangimento no momento em que amigos, conhecidos e familiares o visitam e não se lembra do nome nem de onde os conheceu. Consequentemente, fica sem saber como perguntar, comentar, elogiar, relembrar...
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Na fase em que ele podia ouvir mais do que agora, o diálogo era anunciado com apresentações dos visitantes, no caso familiares dizendo seus nomes e graus de parentesco, que o faziam sorrir diferentemente a cada frase.
– Oi, nono/vovô, sou seu neto. Gosto muito do senhor.
– Meu neto?
– Sim, ele é meu filho e eu sou sua filha. O senhor é meu pai.
– É? Que bom!
– Eu sou seu genro, casado com sua filha.
– Mas que bom, assim. Fico contente.
Sorria, olhava ao redor procurando palavras..., elas não vinham. Não se deixava abater. Emocionado, retribuía os abraços, segurava nas mãos do neto, nos braços da filha, nos ombros do genro, e perguntava interessado:
- Como você se chama?
As apresentações eram renovadas com novas manifestações de afeto. A palavra é mais quando acompanhada pelo toque carinhoso das mãos, do abraço e do beijo, linguagens universais.
Hoje, devido à sua maior dificuldade de ouvir, nos ensina a falar frases curtas, palavras-chave. Seu olhar perscruta o nosso, seu coração avalia pela nossa fisionomia se estamos felizes e se o dia vai ser bom. É o que importa.
O silêncio
A eloquência do silêncio é maior em pessoas com Alzheimer. No dia a dia com meu ancião adorável, vislumbro que fazer parte do seu silêncio, quando ele assim prefere, é o que há de mais vantajoso.
Nesse caso, ficamos quietos, nos olhamos, ele sorri, eu faço o mesmo, juntamos as mãos, afago sua cabeça, ele sorri de novo e tudo recomeça. Claro, a correria da vida não faz parte desses momentos, é preciso entrar em outra dimensão do tempo, aquela em que tudo parece parar. O cantar dos pássaros congela no meio e o tic-tac do relógio fica sem sentido quando a gente olha para a pessoa com Alzheimer e percebe que o seu é o tempo presente.
Há um colapso da subjetividade, o qual não permite reorganizar o passado, diz o filósofo João Teixeira ao comentar estudos da Neurociência:
“Recordar é, em grande parte, reinventar, reorganizar nosso passado e inseri-lo em uma narrativa que compõe nossa subjetividade. É nesse sentido que o Alzheimer se torna algo muito mais devastador do que a doença do esquecimento. Ele compromete a coerência necessária para que tenhamos um self e, com isso, faz que a própria subjetividade entre em colapso”.
Se não podemos contar muito com a subjetividade porque “o Alzheimer se torna muito mais devastador do que a doença do esquecimento”, ficam as palavras que traduzem lembranças, lapsos de memória.
No cotidiano entrego-me à relação de acreditar nas capacidades que meu pai ainda tem, nas coisas que ele atualiza, na relação que podemos recriar, agora e além do tempo. E as memórias, apesar de silenciadas, continuam memoráveis e nos fazem felizes ao citá-las, revivê-las por instantes.
São indícios de que a crença no ser humano não precisa ter fim, mesmo que o filme termine antes da conclusão do roteiro.
Estreitar os laços humanos a cada momento faz com que gestos supostamente rotineiros adquiram eloquência inexplicável.
É a oportunidade de nos presentearmos humanizando os cuidados, desafiando a doença e reafirmando que se pode ir além, muito além, reinventando sentidos e narrativas.
Então é Natal.